domingo, 13 de março de 2011

Grande pequeno homem

       João Trago Dolores, exemplo de brasileiro que contribui para o desenvolvimento do nosso país. Ótimo funcionário. Assíduo, pontual, compromissado em manter a boa imagem. Também o é, comportado cidadão e sensato pai de família. Em dia com todos os impostos: água, luz, telefone, IPTU e também a mensalidade da escolinha das crianças - ele é muito prestativo com os filhos. João Trago é o típico cidadão que nossa estrutura social globalizada constrói: tem forma, mas não tem conteúdo.
       Toda manhã quem o acorda é o chuveiro e não o despertador. Sua meditação é vital para o início do dia. São horas concentradas no banho. A água do planeta deveria rebelar-se. Dizer não! Aí eu queria só vê. As horas de meditação cessariam. "Chega! não mais refrescaremos seus corpos. Greve absoluta. Nos tratam com desdém. Nós cortamos o mundo todo. Lavamos cada porcaria que vocês nem imaginam. E o que ganhamos? Ralo. Escorremos pelo ralo. Ninguém se importa com a água. A cada dia perdemos o nosso espaço. Numa cidade como São Paulo, só 17% das indústrias tratam seus esgotos; 83% jogam nos rios toda a sujeira que produzem... BASTA! Viva a revolução!" Já pensou se isso acontecesse? Deixa pra lá. Ao abrir o portão de sua casa, João aprecia o primeiro cigarro do primeiro maço do dia. Apreciado, lança a bituca na rua. João, João, meu velho. Se é que me permite chamá-lo assim. Quantas bitucas são abandonadas por seus donos? Milhares de fumantes cada qual com, no mínimo, 20 bituquinhas jogadas nas ruas por dia. Mas esqueça. Quem sou eu para intrometer-me na sua vida.
       Já dentro do seu meninão - é assim que João chama seu carro, a forma carinhosa é para amenizar a idéia de  posse - segue em direção ao escritório. Não há tempo de observar a paisagem. Toda atenção aos semáfaros, ao celular que não para de tocar, às estações de rádio que embalam o início de mais um dia. Não existe uma única vez que João não vai à padaria, antes de subir ao escritório. No balcão, toma o seu café com a mesma confiança de sempre. Assiste ao noticiário com a mesma confiança de sempre. Tem total conhecimento da política nacional, quiçá mundial. Inflação, investimento, situação socioeconomica e todas essas complicações do homem moderno. Porém, falta a ele algo mais. O pensamento é pequeno para interpretar os códigos: sinais de fumaça, ecossistema ameaçado, instabilidade climática, desmatamento - nossos bosques têm menos vida e nossos campos menos flores... "Eu é que não posso salvar o mundo." João, meu caro amigo. É claro que você pode! Tens a chave. Não desanime, meu rapaz. Afinal, o que é a alegria? O que é o sonho? O que é o mundo para ti, Joãozinho? É o gozo da sobrevivência forçada, alienada, alucinada, nada vezes nada. É o anseio dos nove meses, rasgar o ventre e abocanhar a vida. Para quê? Para fechar-se no útero que criastes. Desprendeste-se do cordão umbilical para atrelar-se a tantos outros. Há liberdade nas matas, há frescor nas folhas, há vida que rugi, uiva, grunhe... FALA!! Desculpe-me, desculpe-me. A emoção foi mais forte. Nem o conheço ao ponto de deixar extravasar meus sentimentos. Não quero confundir as coisas. Sou apenas, e serei sempre, o narrador dessa tentativa frustrada de crônica. Nada mais que isso.
       No escritório, João Dolores sente-se em sua casa. Sua mesa é sua amante. Deixa-o excitado. Faz todo o serviço com muito zelo. Tudo para ouvir do chefe "Esse é meu meninão".
       - Fechem as janelas, liguem o ar condicionado. Esta cidade fede!
       Não se esqueça, sr. João. O teu mundo não está fora desta cidade. É parte integrnte dela.
       - Droga! Derrubei café na mesa. Marinaaaaaaalva! Onde ela está. Vou usar essas folhas de sulfites para limpar a mesa.
       Quantos distraídos não derrubam café nos lugares mais desapropriados. E quantas árvores não serviram para nada. A não ser para limpar o café esparramdo sobre a mesa. Entre o céu e a cadeira que a acomoda o seu traseiro há mais mistérios do que sonha a nossa vã filosofia. Olhando pela janela, ele, agora, vê a cidade. Ela é cinza. É suja. Há, tão somente, um verde por detrás dos prédios. Esquecido. A cidade, Joãozinho - ram ram (tentativa onomatopéica) - quero dizer : sr. João Trago, é um espelho. Há quem veja e se esqueça da imagem. Ela sempre será aquilo carregamos conosco. A vontade infinita de nos encontrarmos. Vossa senhoria prefere a sala com ar condicionado, fax, computador, impressora... Tudo consome o mundo? Será isso mesmo a realidade? Não! Calma, você está me deixando confuso.
       - Desperdicio que nada, do pó ao pó.
       É essa a tua filosofia? Tudo bem. Cada um tem a sua opinião. No entanto, "quando o julgarem, seja condenado; e, tida como pecado, a sua oração... Fiquem órfãos os seus filhos, e viúva, a sua esposa. Andem errantes os teus filhos e mendiguem, e sejam expulsos das ruínas de suas casas..."
       Ao final do dia, João Trago Dolores enconra-se com a mulher e os filhos no shopping. Degustam as iguarias naturais para homens naturais. No caminho para casa:
       - Papai, diz sua filha, onde jogo o lixo?
       - Joga pela janela, filinha. Na rua mesmo.

2 comentários:

  1. Vejo engajamento. Literatura engajada é a sua cara, meu chapa! Vejo também um narrador irritado, meio que intrometido mesmo, legal, gostei, um narrador consciente da alienação da sua personagem narrada.

    ResponderExcluir
  2. É... Às vezes tento fugir dessa crticidade e acabo me reencontrando nela novamente... rsrs
    Valeu, xará!!!

    ResponderExcluir