segunda-feira, 14 de maio de 2012




“Quando ela dorme em minha casa”
[...] O que penso sobre as coisas é tão fútil. O rídiculo do meu riso fraco que insiste tomar a frente faz-me mais bobo do que já sou. Ver-te linda na cama é tudo que me vale na vida. Abro mão daquilo que não dá mão, só para passar horas vendo teus cabelos escorrerem silenciosos pelo teu corpo calmo. A janela ainda fechada, o nosso é mundo aqui, será sempre aqui. Ver-te linda, desenhada na cama. Ah, queria eu tê-la desenhado; eu a desenharia assim: como a vejo. Os mesmos traços, relevos discretos, linhas e linhas emaranhadas sobre tua pele que eu nunca quero desmaranhar. Ainda bem que não fui o autor de ti, fui mais feliz. Posso morrer a contemplá-la, calado. O ruído das palavras feri o teu silêncio que se espalha intocável [...] De dia, lutarei; de noite, embriagar-me-ei; nas manhãs, amarrarei meu corpo ao teu, sempre.



domingo, 6 de maio de 2012




O ESCRITOR
João Trago Dolores


Toda biblioteca tem um ar especial e a que eu freqüento não é diferente. Talvez seja o fato de muito conhecimento no mesmo lugar, no mesmo espaço. Ideias que entram em atrito, ou em harmonia. Contudo, o que são esses livros expostos nas prateleiras? Eles parecem carne pendurada no açougue, prontas para matar a fome dos famintos por conhecimento. Por aqui cortar ninguém corta, mas Dona Judith e a Dona Emiliana servem-nos verdadeiros filés. Elas conhecem cada livro, onde estão, para onde foram, do que se tratam. Essas senhoras são verdadeiras relíquias do nosso bairro. Deveriam ser canonizadas - elas cuidam tão bem desses livros enrugados e amarelados - ou até mesmo condecoradas cidadãs honorárias do bairro de São Miguel Paulista. Quando meu filho nascer, o primeiro lugar que o levarei será a uma biblioteca. Não que eu tenha nascido numa, porém posso dizer que cresci junto a essas instantes. Folheei essas páginas sentado no chão, escorado nas colunas, agachado, debruçado sobre o armário de consultas. Há também mistérios nesse lugar. O senhor Juca, homem de idade que vive no prédio cuidando da manutenção, contou-me uma vez que escutara na madrugada, quando veio reinstalar a parte elétrica, vozes a conversarem pelo salão. Ele conta que essas vozes discutiam entre si, no entanto, ele não teve a coragem de espiá-las. Ficou espremido no forro do teto, e só saiu de lá quando não escutara nenhum ruído, silêncio total. “Cruz credo! Deus me livre!” Sr. Juca sempre finaliza toda história com interjeições e o sinal da cruz.
Quantos leitores não folhearam essas páginas, esses livros, esses sonhos cuja leitura leva-nos. Realmente, o ambiente é diferente. Até parece que os sentidos ficam mais aguçados, atenciosos. Qualquer ruído é perceptível, no entanto, não nos tira a atenção. Mas foi numa certa manhã, quando fui à biblioteca, como de costume, folhear as páginas do jornal, que fiquei muito encucado. Sentei-me de costume na mesa lateral, com a cadeira de costas para a janela que dá à vista para a rua. E no vai-e-vem de tantas pessoas, um homem chamou-me a atenção. Não parecia ser dali. Já que há tempos freqüento essa biblioteca. Ele se sentou à mesa de frente da qual me sentara. Trouxe consigo um caderno e uma caneta. Deixou-os sobre a mesa e foi até às prateleiras. Até aí tudo bem, não há nada de errado nisso. Continuei a minha leitura. Quando ele voltou a sentar-se, foi o momento que minha curiosidade atiçou-me. Ele fechou os olhos como se estivesse esperando alguma coisa vir na mente, ou talvez estivesse rezando. De repente começou a escrever; parou; retornou a escrever e seguiu desenvolvendo os seus escritos. O mais interessante era a sua fisionomia. Lembrava-me alguém muito próximo, não sei quem, mas lembrava-me. E nessas de: escreve, para; para, escreve. Ele fixou os olhos no papel, leu o que acabara de escrever. Deu risadas para dentro. Olhava com certo desprezo, mas também, em certos momentos, com admiração. Minha curiosidade sobre o que ele escrevia só aumentava. Ele novamente parou e, em seguida, como quem espera uma resposta e não a tem, levantou-se impacientemente. Foi em direção aos livros de filosofia. Por mais que me atentasse a curiosidade, mantive-me sentado em minha cadeira. Voltou falando sozinho. Já sentado, eu o olhava disfarçadamente. Seus olhos fixavam-se para o nada, era uma visão diretamente para o infinito, que não terminava nas paredes da biblioteca, atravessavam-na. Não mais que de repente, ele voltava a escrever. Escrever escrever escrever escrever. Eu já nem lia mais o jornal. Queria decifrá-lo, o escritor. Interpretá-lo. Entender o porquê de escrever. Qual o fundamento de preencher as linhas vazias daquelas folhas de caderno. Para que escrever? Tanto já foi escrito. Será que as palavras não têm fim? O que faz um homem escrever, qual é a razão. O motivo talvez seja a semelhança da palavra e o homem. Ambos não sobrevivem sem a alma, são movidos por sentimentos. Nada mais que sentimento. O que seria da palavra se ela não transbordasse tristezas, alegrias, tragédias, romances. Seria, simplesmente, um amontoado de nada. A alma da palavra é o desejo da consciência de encontrar razão na inconsciência. Assim é o homem também. O que seria de nós sem a infinidade de sentimentos. Não nos faríamos homens se não houvesse a dor, o amor; o bem, o mal. Seríamos um tipo estranho de anormalidade indecifrável que passaria desapercebida na vida terrestre. Então o verbo escrever é muito mais que o seu significado semântico. Ele é o adjetivo, o advérbio, o sujeito, o predicado, o núcleo de tudo que se possa imaginar. É a luz. Depois dessa reflexão comigo mesmo, onde me perdi e não cheguei à conclusão alguma. Observei o escritor, a partir daquele momento, com outros olhos. Eu tinha que saber o que se passava naquele caderno, para onde sua imaginação levava-o... (continua)






Não procuro nesse poema, metrificá-lo.
Não procuro nos versos, entoá-los de figuras e expressões.
Nem tão pouco escrevê-lo na impecabilidade, de acordo com as regras.

Procuro apenas ter a certeza de que as palavras são mortas.
Logo, são simplesmente códigos
Nada fazem
Nada fizeram
Nada farão

Somos nós, em nós mesmos e perdidos de nós
Que carregamos aquilo que as movem:
O sentimento...
É do sentimento que se constrói todo o universo.
Pois ele surgiu do sentimento ...
Do sentimento de Deus, que se expande e se contrai...

 


Tantas são as vezes que não me lembro quem sou.
Sempre, ou quase sempre, quero ser o outro.
Deixo o ser e apenas quero.
Quero o querer arrematador.
Tomo posse do outro, e o outro do outro, e o outro do outro e assim por diante.

Quando o Sol acorda o quintal, eu abro os olhos.
Quando o galo acorda o sol, meu pai prepara o café.
E quando o sol acorda, todos dormem, eternamente, um sono profundo.




Eu quero ir

ao outro lado da rua

          O lado
de cá da rua


                                                                                  é cheio de vazio


Quando eu chegar do lado

                          de lá da rua

                   Quererei o lado
de cá da rua,

pois o lado

                         de lá da rua

                                                                                   é cheio de vazio também


terça-feira, 1 de maio de 2012

SEU EUGÊNIO
Seu Eugênio é mágico. Seu Eugênio é genial. Faz brinquedos fantásticos para as crianças da vizinhança. Ele alegra a todos com seu riso de arrancar sorrisos de qualquer rosto desalmado. Seu Eugênio é mágico. Ele fez para o Duda, menininho que vive sujo e descalço pela rua, um boneco que conta histórias. O boneco tem na memória cerca de 30 historinhas infantis. Quem quiser encontrar o Duda, sempre o procuram para pedir favores a ele, é só olhar ao pé da árvore, deitado ao lado do degrau da casa do Seu Eugênio, escutando as historinhas. Seu Eugênio é genial. Lá vem Seu Eugênio descendo a rua na bicicleta que faz som de trem. Toda molecada segue correndo atrás, é um alvoroço total. Os vizinhos cumprimentam-no. Também, são mais de cinqüenta anos aqui na vila. Tem muita história para contar. Quando chegou por aqui era tudo mato, viu cada casinha ser levantada, as ruas se enchendo, pessoas chegando cada vez mais...
“Ao Sr. Paulo César de Medeiros Pitangueira...” Assim se inicia a carta da prefeitura ao Seu Eugênio. A correspondência foi entregue a muitos moradores da região, era o aviso de despejo. Na região, para o bom desenvolvimento da sociedade, será construída uma gigantesca área comercial. As famílias serão indenizadas corretamente. O menino Duda ficou muito feliz, ele vai morar numa casa nova. Até arrumaram um empreguinho na prefeitura para sua mãe, vagas na creche para seus irmãos. A casa nova terá dois banheiros, um quintalzinho no qual Duda poderá deitar-se abraçado ao boneco. Que nada, o Duda vai esquecer o boneco por aí. Seu Eugênio não será mais genial, nem mágico. Seu Eugênio será somente o Sr. Paulo César de Medeiros Pitangueira. Será um velho maluco, cheio de esquisitices, a morar em outro bairro. E quem sabe, também o tirarão de lá novamente, por outro motivo de progresso, enxotado feito cão. Seu Eugênio é homem inteligente, respeita o progresso, a vida em sociedade e suas necessidades. Mas não é tão simples assim, é um pedaço dele que estão arrancando. Será que ninguém entende? Há quem pense que isso seja um sentimentalismo barato. Eu não entendo como sentimentalismo, é algo tão racional. 
Amanhecido o dia, os tratores chegaram para derrubar algumas casas, dar inicio ao bem estar de todos. Todos? Não. Seu Eugênio dormi. Seu Eugênio está morto em sua cama. Seu Eugênio só queria ser genial; mágico. Ele não entendia o mundo que o chamava de sentimentalista. É razão pura.
Idas e vindas,
à Casa Bandeirista do Tatuapé
Nunca imaginei que sentiria o que senti. Aquelas paredes, aquelas portas, a mesa, a escada, o chão... O que guardam? O que escondem? Se tivessem bocas, contar-nos-iam historias de outrora. Historias de um passado que nos passa despercebido. Abandonado feito trapo jogado no quintal. Percorrer a mão sobre aqueles moveis, é sentir as mãos que se debruçaram ali, é sentir as marcas e as cicatrizes do tempo invadindo a alma. Quantas mãos abriram e fecharam aquelas janelas com medo da chuva forte ou à espera do sol caloroso? As mãos delicadas de uma linda mulher; as mãos calejadas de um tropeiro cego de fome que se achegou à procura de comida; as mãos lisas, acostumadas apenas com as páginas do livro, de um padre. Imagino homens e mulheres subindo e descendo aquelas escadas durante esses 500 anos. Crianças inventando brincadeiras com o barro, com os galhos, com a imaginação livre. Quantos sonhos tiveram seu começo e o seu fim naquele sótão? Quantos olhares foram lançados à margem do rio, prevendo o futuro dos povos? Quantos corpos estiraram-se sob o alpendre, com vistas ao céu de mil estrelas? Aquela casa rodeada de índios, tribo mãe e tribo pai de nossa existência. Índios bravios que olhavam curiosos àquela gente que se aproximava. Gente de corpo coberto, uns se fizeram de amigos e amigos foram, pois cedo ou tarde eles se encontrariam; outros se fizeram de amigos e amigos não foram, julgavam-se superiores, iluminados. Desbravaram as terras brasileiras em busca de riquezas. Encontraram. Levaram. Gozaram. Deixaram-nos a cultura, mistura de raças, panelão de tudo mexido. Bom ou ruim, sinceramente, eu não sei. O fato é que talvez no futuro falte-nos alimento, para a alma e para o corpo, e será no retorno ao nosso passado que encontraremos forças para lutar. Ah, zona leste, os teus filhos nasceram da flecha de um índio. Outras cores, outros objetos, outras palavras juntaram-se à flecha lançada ao ar, contudo, o primeiro quem a lançou, definitivamente, foi um índio.