João Trago Dolores, exemplo de brasileiro que contribui para o desenvolvimento do nosso país. Ótimo funcionário. Assíduo, pontual, compromissado em manter a boa imagem. Também o é, comportado cidadão e sensato pai de família. Em dia com todos os impostos: água, luz, telefone, IPTU e também a mensalidade da escolinha das crianças - ele é muito prestativo com os filhos. João Trago é o típico cidadão que nossa estrutura social globalizada constrói: tem forma, mas não tem conteúdo.
Toda manhã quem o acorda é o chuveiro e não o despertador. Sua meditação é vital para o início do dia. São horas concentradas no banho. A água do planeta deveria rebelar-se. Dizer não! Aí eu queria só vê. As horas de meditação cessariam. "Chega! não mais refrescaremos seus corpos. Greve absoluta. Nos tratam com desdém. Nós cortamos o mundo todo. Lavamos cada porcaria que vocês nem imaginam. E o que ganhamos? Ralo. Escorremos pelo ralo. Ninguém se importa com a água. A cada dia perdemos o nosso espaço. Numa cidade como São Paulo, só 17% das indústrias tratam seus esgotos; 83% jogam nos rios toda a sujeira que produzem... BASTA! Viva a revolução!" Já pensou se isso acontecesse? Deixa pra lá. Ao abrir o portão de sua casa, João aprecia o primeiro cigarro do primeiro maço do dia. Apreciado, lança a bituca na rua. João, João, meu velho. Se é que me permite chamá-lo assim. Quantas bitucas são abandonadas por seus donos? Milhares de fumantes cada qual com, no mínimo, 20 bituquinhas jogadas nas ruas por dia. Mas esqueça. Quem sou eu para intrometer-me na sua vida.
Já dentro do seu meninão - é assim que João chama seu carro, a forma carinhosa é para amenizar a idéia de posse - segue em direção ao escritório. Não há tempo de observar a paisagem. Toda atenção aos semáfaros, ao celular que não para de tocar, às estações de rádio que embalam o início de mais um dia. Não existe uma única vez que João não vai à padaria, antes de subir ao escritório. No balcão, toma o seu café com a mesma confiança de sempre. Assiste ao noticiário com a mesma confiança de sempre. Tem total conhecimento da política nacional, quiçá mundial. Inflação, investimento, situação socioeconomica e todas essas complicações do homem moderno. Porém, falta a ele algo mais. O pensamento é pequeno para interpretar os códigos: sinais de fumaça, ecossistema ameaçado, instabilidade climática, desmatamento - nossos bosques têm menos vida e nossos campos menos flores... "Eu é que não posso salvar o mundo." João, meu caro amigo. É claro que você pode! Tens a chave. Não desanime, meu rapaz. Afinal, o que é a alegria? O que é o sonho? O que é o mundo para ti, Joãozinho? É o gozo da sobrevivência forçada, alienada, alucinada, nada vezes nada. É o anseio dos nove meses, rasgar o ventre e abocanhar a vida. Para quê? Para fechar-se no útero que criastes. Desprendeste-se do cordão umbilical para atrelar-se a tantos outros. Há liberdade nas matas, há frescor nas folhas, há vida que rugi, uiva, grunhe... FALA!! Desculpe-me, desculpe-me. A emoção foi mais forte. Nem o conheço ao ponto de deixar extravasar meus sentimentos. Não quero confundir as coisas. Sou apenas, e serei sempre, o narrador dessa tentativa frustrada de crônica. Nada mais que isso.
No escritório, João Dolores sente-se em sua casa. Sua mesa é sua amante. Deixa-o excitado. Faz todo o serviço com muito zelo. Tudo para ouvir do chefe "Esse é meu meninão".
- Fechem as janelas, liguem o ar condicionado. Esta cidade fede!
Não se esqueça, sr. João. O teu mundo não está fora desta cidade. É parte integrnte dela.
- Droga! Derrubei café na mesa. Marinaaaaaaalva! Onde ela está. Vou usar essas folhas de sulfites para limpar a mesa.
Quantos distraídos não derrubam café nos lugares mais desapropriados. E quantas árvores não serviram para nada. A não ser para limpar o café esparramdo sobre a mesa. Entre o céu e a cadeira que a acomoda o seu traseiro há mais mistérios do que sonha a nossa vã filosofia. Olhando pela janela, ele, agora, vê a cidade. Ela é cinza. É suja. Há, tão somente, um verde por detrás dos prédios. Esquecido. A cidade, Joãozinho - ram ram (tentativa onomatopéica) - quero dizer : sr. João Trago, é um espelho. Há quem veja e se esqueça da imagem. Ela sempre será aquilo carregamos conosco. A vontade infinita de nos encontrarmos. Vossa senhoria prefere a sala com ar condicionado, fax, computador, impressora... Tudo consome o mundo? Será isso mesmo a realidade? Não! Calma, você está me deixando confuso.
- Desperdicio que nada, do pó ao pó.
É essa a tua filosofia? Tudo bem. Cada um tem a sua opinião. No entanto, "quando o julgarem, seja condenado; e, tida como pecado, a sua oração... Fiquem órfãos os seus filhos, e viúva, a sua esposa. Andem errantes os teus filhos e mendiguem, e sejam expulsos das ruínas de suas casas..."
Ao final do dia, João Trago Dolores enconra-se com a mulher e os filhos no shopping. Degustam as iguarias naturais para homens naturais. No caminho para casa:
- Papai, diz sua filha, onde jogo o lixo?
- Joga pela janela, filinha. Na rua mesmo.