domingo, 6 de maio de 2012




O ESCRITOR
João Trago Dolores


Toda biblioteca tem um ar especial e a que eu freqüento não é diferente. Talvez seja o fato de muito conhecimento no mesmo lugar, no mesmo espaço. Ideias que entram em atrito, ou em harmonia. Contudo, o que são esses livros expostos nas prateleiras? Eles parecem carne pendurada no açougue, prontas para matar a fome dos famintos por conhecimento. Por aqui cortar ninguém corta, mas Dona Judith e a Dona Emiliana servem-nos verdadeiros filés. Elas conhecem cada livro, onde estão, para onde foram, do que se tratam. Essas senhoras são verdadeiras relíquias do nosso bairro. Deveriam ser canonizadas - elas cuidam tão bem desses livros enrugados e amarelados - ou até mesmo condecoradas cidadãs honorárias do bairro de São Miguel Paulista. Quando meu filho nascer, o primeiro lugar que o levarei será a uma biblioteca. Não que eu tenha nascido numa, porém posso dizer que cresci junto a essas instantes. Folheei essas páginas sentado no chão, escorado nas colunas, agachado, debruçado sobre o armário de consultas. Há também mistérios nesse lugar. O senhor Juca, homem de idade que vive no prédio cuidando da manutenção, contou-me uma vez que escutara na madrugada, quando veio reinstalar a parte elétrica, vozes a conversarem pelo salão. Ele conta que essas vozes discutiam entre si, no entanto, ele não teve a coragem de espiá-las. Ficou espremido no forro do teto, e só saiu de lá quando não escutara nenhum ruído, silêncio total. “Cruz credo! Deus me livre!” Sr. Juca sempre finaliza toda história com interjeições e o sinal da cruz.
Quantos leitores não folhearam essas páginas, esses livros, esses sonhos cuja leitura leva-nos. Realmente, o ambiente é diferente. Até parece que os sentidos ficam mais aguçados, atenciosos. Qualquer ruído é perceptível, no entanto, não nos tira a atenção. Mas foi numa certa manhã, quando fui à biblioteca, como de costume, folhear as páginas do jornal, que fiquei muito encucado. Sentei-me de costume na mesa lateral, com a cadeira de costas para a janela que dá à vista para a rua. E no vai-e-vem de tantas pessoas, um homem chamou-me a atenção. Não parecia ser dali. Já que há tempos freqüento essa biblioteca. Ele se sentou à mesa de frente da qual me sentara. Trouxe consigo um caderno e uma caneta. Deixou-os sobre a mesa e foi até às prateleiras. Até aí tudo bem, não há nada de errado nisso. Continuei a minha leitura. Quando ele voltou a sentar-se, foi o momento que minha curiosidade atiçou-me. Ele fechou os olhos como se estivesse esperando alguma coisa vir na mente, ou talvez estivesse rezando. De repente começou a escrever; parou; retornou a escrever e seguiu desenvolvendo os seus escritos. O mais interessante era a sua fisionomia. Lembrava-me alguém muito próximo, não sei quem, mas lembrava-me. E nessas de: escreve, para; para, escreve. Ele fixou os olhos no papel, leu o que acabara de escrever. Deu risadas para dentro. Olhava com certo desprezo, mas também, em certos momentos, com admiração. Minha curiosidade sobre o que ele escrevia só aumentava. Ele novamente parou e, em seguida, como quem espera uma resposta e não a tem, levantou-se impacientemente. Foi em direção aos livros de filosofia. Por mais que me atentasse a curiosidade, mantive-me sentado em minha cadeira. Voltou falando sozinho. Já sentado, eu o olhava disfarçadamente. Seus olhos fixavam-se para o nada, era uma visão diretamente para o infinito, que não terminava nas paredes da biblioteca, atravessavam-na. Não mais que de repente, ele voltava a escrever. Escrever escrever escrever escrever. Eu já nem lia mais o jornal. Queria decifrá-lo, o escritor. Interpretá-lo. Entender o porquê de escrever. Qual o fundamento de preencher as linhas vazias daquelas folhas de caderno. Para que escrever? Tanto já foi escrito. Será que as palavras não têm fim? O que faz um homem escrever, qual é a razão. O motivo talvez seja a semelhança da palavra e o homem. Ambos não sobrevivem sem a alma, são movidos por sentimentos. Nada mais que sentimento. O que seria da palavra se ela não transbordasse tristezas, alegrias, tragédias, romances. Seria, simplesmente, um amontoado de nada. A alma da palavra é o desejo da consciência de encontrar razão na inconsciência. Assim é o homem também. O que seria de nós sem a infinidade de sentimentos. Não nos faríamos homens se não houvesse a dor, o amor; o bem, o mal. Seríamos um tipo estranho de anormalidade indecifrável que passaria desapercebida na vida terrestre. Então o verbo escrever é muito mais que o seu significado semântico. Ele é o adjetivo, o advérbio, o sujeito, o predicado, o núcleo de tudo que se possa imaginar. É a luz. Depois dessa reflexão comigo mesmo, onde me perdi e não cheguei à conclusão alguma. Observei o escritor, a partir daquele momento, com outros olhos. Eu tinha que saber o que se passava naquele caderno, para onde sua imaginação levava-o... (continua)


2 comentários:

  1. Xiiiiiii!!! O cara aí vai tomar o caderninho do cara... Cuidado!

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  2. Que nada... São as mesmas pessoas... e o caderno está em branco e a caneta não tem tinta... hahaha

    Valeu, Xará!!!

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